TRÂNSAMAZÔNICA
CLAREIRA - A estrada na mata: aberta durante a ditadura militar, ela foi
abandonada e tomada por atoleiros e buracos - Lalo de
Almeida/Folhapress/.
Iniciada na chamada “Marcha para o Oeste”, um conjunto de ações lançadas
por Getúlio Vargas no fim dos anos 30, a estratégia de ocupar e ligar a
Amazônia ao restante do Brasil virou um plano central de governo
durante a ditadura militar (1964-85) sob o slogan “Integrar para não
entregar”. Aberta no coração da floresta, a rodovia BR-319, que liga
Manaus a Porto Velho — e, de lá, conecta a Região Norte ao país —, foi
um dos maiores símbolos desse movimento, que também incluía a construção
da Transamazônica e de hidrelétricas, a autorização de garimpos, a
concessão de incentivos fiscais e uma intensa propaganda governamental
para atrair os “homens sem terra” a ocupar a “terra sem homens”, “o
Eldorado que surpreenderá o mundo”, como dizia a publicidade oficial.
Em 1969, uma reportagem de VEJA acompanhou o início da construção da
BR-319, que envolvia centenas de homens derrubando, a machadadas,
árvores tão altas quanto um prédio de dez andares, além do gigantesco
trabalho de pavimentação. “Uma grande guerra de batalhas demoradas e
cansativas para decidir a quem pertence a Amazônia, se ao homem ou à
natureza”, relatava o texto. Considerada um dos maiores cases da ousadia
da engenharia da época, a via ficou pronta em sete anos. Passadas mais
de quatro décadas, o retrato da região mostra que a selva, até aqui,
está vencendo a batalha contra o avanço dos homens. O miolo da estrada
de 885 quilômetros perdeu completamente o asfalto e está repleto de
atoleiros, crateras e locais onde a mata tomou a pista — somente as
extremidades próximas às capitais do Amazonas e de Rondônia
apresentam-se em condições de tráfego.
NA LAMA - Carga de oxigênio: caminhões tiveram de ser puxados por tratores – //Reprodução
A depender do governo de Jair Bolsonaro, a luta para abrir caminho no
coração da floresta vai continuar. A recuperação da BR-319 se tornou
uma das prioridades de investimentos na área de infraestrutura na Região
Norte. O desafio será maior ainda pelo seguinte “detalhe”: o mesmo
governo recordista de desmatamento da Amazônia e que fala em passar uma
boiada sobre as regras ambientais pretende transformar a obra em uma
prova de que o Brasil é capaz de conciliar desenvolvimento econômico à
necessidade de preservação. “O nosso plano é que a rodovia seja um
grande cartão de visitas para mostrar ao mundo o nosso respeito ao meio
ambiente. Será um modelo para provar que é possível equilibrar os três
pilares do desenvolvimento: o econômico, o social e o ambiental”,
declara o secretário nacional de Transportes Terrestres, coronel
Marcello da Costa.
A complexidade da obra e a delicadeza de abrir caminho na parte mais
intocada da floresta fizeram governos anteriores recuar da intenção de
executar algo semelhante. A reconstrução da BR-319 já fez parte dos
planos Brasil em Ação, de Fernando Henrique Cardoso, e do Programa de
Aceleração do Crescimento (PAC), de Luiz Inácio Lula da Silva, mas nunca
saiu do papel. Na atual gestão, o Ministério da Infraestrutura,
comandado por Tarcísio Gomes de Freitas, já recapeou mais de 2 500
quilômetros de rodovias pelo Brasil afora, o que lhe rendeu o apelido de
o “asfaltador-geral da República”, mas nada se compara a essa
intervenção no coração da Amazônia. O presidente e Tarcísio já
anunciaram que 52 quilômetros devem ser concluídos até 2022, a tempo de
ser exibidos na propaganda eleitoral. A ideia é também iniciar até lá os
trabalhos em outro trecho maior, de 405 quilômetros.
ESTRATÉGIA - Transamazônica: a rodovia foi um dos símbolos do projeto
militar de integrar o Brasil – Roberto Stuckert/Folhapress/.
No total, a repavimentação da estrada pode custar 1 bilhão de reais, mas
nesse projeto o dinheiro sempre foi o de menos. O grande impeditivo é
que a rodovia dá acesso a uma área intacta da Amazônia — um santuário de
animais e plantas ameaçados de extinção, como a onça-pintada e a
castanha-da-amazônia, além de dezenas de comunidades indígenas. Não era
possível avançar no plano sem um aprofundado estudo de impacto
ambiental. Complexo, ele demorou onze anos para ficar pronto, até que
acabou sendo entregue em agosto de 2020 pelo Departamento Nacional de
Infraestrutura de Transportes (Dnit). O trabalho agora está sendo
analisado pela equipe técnica do Ibama para a liberação do licenciamento
do restante da obra. Quem acompanha o assunto de perto diz que,
diferentemente do que houve nas gestões passadas, o órgão não será um
empecilho ao empreendimento.
A despeito do otimismo dentro do governo quanto à superação desse
entrave burocrático, a pressão de ambientalistas, que são historicamente
contrários à estrada, deve crescer nos próximos meses. Eles preveem,
com a obra, um aumento de quatro vezes nas taxas de desmatamento naquela
região. Não se trata de um alarmismo típico dos ecoxiitas, pois o
próprio relatório de impacto ambiental encomendado pelo governo faz
alertas claros sobre o risco da intervenção. Em determinado trecho do
trabalho, de mais de 2 000 páginas, o documento diz o seguinte: “A
melhoria do acesso facilita a abertura de ramais de forma indiscriminada
contribuindo para a exploração de atividade madeireira e a expansão da
agropecuária, alterando a paisagem com o processo de conversão de áreas
de floresta em pastagens e lavouras temporárias”. O relatório, no
entanto, conclui que a repavimentação vale a pena em virtude dos
“benefícios sociais e econômicos gerados” e faz um alerta de que a
“viabilidade ambiental” se dá com “a plena execução das medidas
mitigadoras” — ações para atenuar o impacto do projeto na floresta.
Para quem engrossa o coro de oposição do projeto, obter o
licenciamento para a obra em um prazo curto não será tão simples quanto
pensa o governo. “A legislação prevê a realização de audiências públicas
com todas as partes envolvidas”, lembra Rafael Rocha, procurador do
Ministério Público Federal do Amazonas. Nesse aspecto, o complicador é
que os encontros estão suspensos por tempo indefinido por causa da
pandemia de Covid-19. Mesmo vozes mais moderadas envolvidas nessa
discussão, como Sarney Filho, ex-ministro do Meio Ambiente dos governos
FHC e Michel Temer, fazem restrições. Segundo Sarney Filho, a via
provocaria o efeito “espinha de peixe” — a abertura descontrolada de
vicinais clandestinas no seu entorno. “Com certeza, vai provocar a
ocupação ilegal de terras públicas e unidades de conservação”, afirma.
FOCO - Tarcísio: o ministro ganhou o apelido de “asfaltador-geral da República” – Alan Santos/PR
Firme na decisão de tocar a obra adiante, o governo tenta contornar
as objeções acenando com a proposta de transformar a BR-319 numa
“estrada-parque” cercada e monitorada 24 horas por dia, com postos de
fiscalização, consolidação de unidades de conservação em volta e a
criação de uma floresta nacional, além de dezenas de passagens
subterrâneas para a circulação de animais. Conforme os estudos, a
exploração organizada do turismo também seria uma grande ferramenta para
inibir crimes ambientais. Diferentemente de outras propostas polêmicas
da atual gestão, como liberar o garimpo em áreas indígenas, a
reconstrução da BR-319 é defensável sob vários ângulos, incluindo a
necessidade social. A única ligação terrestre de Manaus com o restante
do Brasil é a rodovia — as outras opções são por transporte aéreo e
fluvial. E o isolamento geográfico se mostrou extremamente danoso após a
crise de falta de oxigênio durante o colapso do sistema de saúde
amazonense no início deste ano. Vindos da Venezuela e de outras partes
do país, comboios de caminhões carregados com mais de 100 000 metros
cúbicos do produto precisaram ser puxados por tratores em meio aos
atoleiros. A viagem demorou três dias, ainda assim menos do que
demoraria pela via tradicional, a balsa do Rio Madeira, de seis dias.
“Com essa crise, a falta da rodovia mostrou que não é só um problema
econômico, mas de saúde pública. Se tivéssemos o asfalto, teríamos
conseguido trazer o oxigênio de uma forma mais barata e rápida”, disse a
VEJA o governador do Amazonas, Wilson Lima (PSC).
Além disso, é consenso entre os envolvidos a importância da via para a
infraestrutura econômica da região. Segundo Wilson Périco, presidente
do Centro da Indústria do Estado do Amazonas (Cieam), a existência de um
caminho rodoviário consistente para escoar a produção iria alavancar a
concorrência com outros modais, como o aéreo e o fluvial, e ajudaria a
indústria e o comércio locais. “Com um tempo de entrega mais rápido, a
um custo menor, você reduz o frete e, consequentemente, o custo dos
produtos tende a diminuir. Para as empresas, melhora o fluxo de caixa,
já que cai o tempo de entrega e recebimento de produtos”, afirma.
Segundo o economista Osiris da Silva, a rodovia é “essencial” para
integrar o Amazonas à economia do país. “Estudos conclusivos demonstram
que o desenvolvimento econômico é a chave para a proteção ambiental”,
lembra.
O grande problema é que o governo Bolsonaro dispõe de pouco — ou
nenhum — crédito na área ambiental, o que aumenta as dúvidas sobre se as
promessas de fazer da BR-319 um cartão-postal serão de fato levadas a
cabo ao fim das obras. Se esses compromissos forem realmente cumpridos, a
empreitada vai representar uma formidável guinada no comportamento do
Palácio do Planalto na política amazônica, deixando de lado a
mentalidade destrutiva do progresso a qualquer custo em troca da tática
muito mais inteligente do desenvolvimento sustentável. Nunca é tarde
para rever a ideia de deixar passar a boiada. O país só tem a ganhar com
isso.
(Por:Veja.com.br)