sábado, 25 de novembro de 2017

Robert Mugabe: já vai tarde. Após 37 anos no poder, o presidente do Zimbábue renunciou. Ele entra para a História como um Mandela às avessas

DITADOR... JÁ VAI TARDE
 Robert Mugabe presidente do Zimbábue (Foto:  Platon/Trunk Archive)
 Robert Mugabe: "Minha decisão de renunciar é voluntária" (Foto: Platon/Trunk Archive)
 Mugabe e a mulher,Grace.Aos 93 anos,ele tentou passar o poder para ela.O partido reagiu (Foto:  Philimon Bulawayo/REUTERS)
 DESGRAÇA
Mugabe e a mulher, Grace. Aos 93 anos, ele tentou passar o poder para ela. O partido reagiu e impôs a renúncia (Foto: Philimon Bulawayo/REUTERS)


"Eu, Robert Gabriel Mugabe, nos termos da seção 96 da Constituição, formalmente entrego minha renúncia como presidente da República do Zimbábue, com efeito imediato. Minha decisão de renunciar é voluntária da minha parte e nasce da minha preocupação com o bem-estar do povo do Zimbábue e do meu desejo de assegurar uma suave, pacífica e não violenta transferência de poder que fundamente a segurança, a paz e a estabilidade da nação.” Pouco importou se aquele que disse “Eu, Robert Gabriel Mugabe” não era Robert Gabriel Mugabe – e sim Jacob Mudenda, porta-voz do Parlamento. Pouco importou se o verdadeiro Mugabe estava preso em casa, em situação de quase golpe militar, havia seis dias. Quando Mudenda leu a palavra “renúncia”, na tarde do dia 21, aplausos, gritos e assovios explodiram nas ruas da capital, Harare. A renúncia era um gesto esperado, mas esperado há tanto tempo que, ao acontecer, tornou-se surpreendente. Mugabe ocupava o poder havia 37 anos.

Em 1980, Mugabe representou a esperança de paz na África após um século de colonização europeia. As batalhas de descolonização costumavam se desdobrar em lutas internas pelo poder recém-conquistado. Um dos últimos países da região a declarar independência, o Zimbábue interrompeu esse ciclo de violência ao convocar eleições transparentes para o Parlamento. Mugabe foi o primeiro negro a assumir o poder, em uma ex-colônia africana, por vias democráticas. A história de Mugabe lembra a do líder sul-africano Nelson Mandela. Os dois nasceram em famílias negras de classe média. Mugabe em 1926, Mandela em 1918. Os dois foram educados em escola religiosa e frequentaram a mesma universidade. Mandela formou-se advogado. O católico Mugabe tornou-se professor e marxista. Os dois pegaram em armas contra elites locais de origem inglesa. Os dois foram presos: Mugabe por 11 anos, Mandela por 27. Os dois perderam um filho quando estavam na prisão e foram impedidos de assistir ao funeral. Os dois foram eleitos governantes de seus países com um discurso de conciliação entre a maioria negra e a elite branca. Mandela cumpriu a palavra. Mugabe, não. “Mandela foi longe demais em fazer o bem a comunidades não negras, muitas vezes à custa dos negros. Isso é ser santinho demais”, disse Mugabe sobre Mandela. “Vimos a falência de liderança no nosso vizinho Zimbábue”, disse Mandela sobre Mugabe. “Enquanto Mandela usou seus anos na prisão para dialogar com governantes brancos e derrotar o apartheid, Mugabe saiu da prisão determinado a superar a sociedade branca na base da força”, diz o historiador Martin Meredith, autor de biografias sobre os dois líderes. Mandela ganhou o Prêmio Nobel da Paz. Mugabe disse que a vitória militar seria “o maior dos prazeres”. Nos anos seguintes à eleição que poderia pacificar o Zimbábue, mais de 20 mil pessoas morreram numa guerra civil. De vários grupos políticos, restou um só: o ZANU-PF, partido de Mugabe.

Quando Mugabe assumiu o poder, o Zimbábue era o segundo país mais próspero do continente africano, com força na agricultura e na exportação de minerais, como diamantes e platina. No ano 2000, porém, a polarização racial cultivada por Mugabe produziu um desastre. O governo instituiu um programa que permitia a negros invadir terras de fazendeiros brancos. Com a desorganização do agronegócio e sanções da comunidade internacional, a economia local entrou em colapso. Em 2008, a inflação alcançou 231.000.000% ao ano. Os preços dobravam a cada duas semanas. A moeda era tão desvalorizada que o Banco Central chegou a imprimir, para o uso cotidiano, notas de 100 trilhões de dólares zimbabuanos. “Alguns de vocês certamente têm no bolso mais do que o governo tem em caixa”, disse em 2013 o ministro das finanças, Tendai Biti, ao anunciar que o país tinha apenas US$ 217. Segundo a Organização Mundial da Saúde, a expectativa de vida dos homens do país caiu de 54 anos, em 1997, para 36 anos, em 2007. Uma epidemia de cólera deixou mais de 4 mil mortos, em 2009. Segundo a Organização das Nações Unidas, cerca de 1,7 milhão de habitantes passavam fome. Ajudas da vizinha África do Sul e da China impediram o colapso do país. Para evitar revoltas populares, Mugabe instrumentalizou a miséria do povo de Zimbábue. “Para receber comida, você precisa entregar a carteira de identidade às autoridades até depois da eleição”, disse em 2008 James McGee, embaixador dos Estados Unidos em Harare. “O único jeito de comer é abrir mão de votar.” Com fraudes e controle férreo da oposição, Mugabe manteve a realização de eleições – foram nove desde 1980, todas vencidas por seu partido. “Não importa quanta força você tenha, esse território é meu e vou me agarrar a ele até a morte”, disse em 2001. “Só Deus, que me pôs aqui, vai me remover”, disse em 2008. Tirano dentro do país, Mugabe honrava os contratos de exportação de diamantes e arrefecia as pressões internacionais.  

Nos anos 2000, a inflação era tão alta que o Banco Central imprimiu a nota de 100 trilhões de dólares zimbabuanos
 
O discurso de ódio que ajudou a manter Robert Mugabe no poder, pouco a pouco, voltou-se contra ele e sua vida faustosa. O jornal britânico The Guardian estima sua riqueza pessoal em US$ 1 bilhão. O jornal local The Citizen afirma que ele está construindo no país uma casa com 25 quartos, avaliada em US$ 9 milhões. Em Hong Kong, sua família reclama na Justiça a posse de uma casa avaliada em US$ 5 milhões. O filho mais novo de Mugabe, Bellarmine Chatunga, publicou no Instagram uma foto com um relógio e a legenda: “$ 60 mil no pulso quando seu pai manda no país inteiro, sabe como é!!!”. A primeira-dama, Grace Mugabe, é conhecida como “primeira-compradora”, “DisGrace” ou “Gucci Grace”, por seu gosto por artigos de luxo. “O povo poderia ter se fartado de Mugabe por causa de seus próprios defeitos”, diz Jane Morley, analista da consultoria Economist Intelligence Unit, “mas Grace e seus hábitos de consumo foram o que finalmente levou o povo ao limite”.

Com a saúde debilitada, aos 93 anos, Mugabe tentou transferir o poder a Grace, 41 anos mais jovem. No início do mês, destituiu Emmerson Mnangagwa da Vice-Presidência e nomeou a primeira-dama. Parceiro de Mugabe desde a guerrilha, Mnangagwa era tido como o herdeiro natural do poder. Demitido, fugiu do país e articulou o golpe. O Exército prendeu Mugabe em casa, no dia 15, e exigiu sua renúncia. No sábado, dia 18, o presidente foi à TV e discursou por longos 19 minutos – que pareceram ainda mais longos com a habitual pronúncia arrastada. “É verdade que uns poucos incidentes podem ter ocorrido aqui e ali, mas estão sendo corrigidos”, disse. “Ergue-se do encontro de hoje um forte senso de colegialidade e camaradagem, agora unindo os vários braços do nosso aparato de segurança.” Os militares ao lado do presidente, contudo, não expressavam camaradagem. Ao contrário.

No dia seguinte ao discurso de não renúncia, o partido expulsou Mugabe e elegeu Mnangagwa seu novo líder. Na manhã da terça-feira, dia 21, os ministros de Mugabe faltaram à reunião semanal de gabinete. Foram ao Parlamento pedir o impeachment, pela acusação – facilmente comprovável em pesquisas no YouTube – de Mugabe dormir durante eventos oficiais. Horas depois, o líder que falou que jamais renunciaria renunciou por escrito. Terceiro presidente mais longevo do mundo, em 37 anos Mugabe tornou-se um exemplo de tudo aquilo que prometeu combater. Já vai tarde.

(MarceloMoura/Época)

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