DITADOR... JÁ VAI TARDE
Robert Mugabe: "Minha decisão de renunciar é voluntária" (Foto: Platon/Trunk Archive)
DESGRAÇA
Mugabe e a mulher, Grace. Aos 93 anos, ele tentou passar o
poder para ela. O partido reagiu e impôs a renúncia (Foto: Philimon
Bulawayo/REUTERS)
"Eu, Robert Gabriel Mugabe, nos termos da seção 96
da Constituição, formalmente entrego minha renúncia como presidente da
República do Zimbábue, com efeito imediato. Minha decisão de renunciar é
voluntária da minha parte e nasce da minha preocupação com o bem-estar
do povo do Zimbábue e do meu desejo de assegurar uma
suave, pacífica e não violenta transferência de poder que fundamente a
segurança, a paz e a estabilidade da nação.” Pouco importou se aquele
que disse “Eu, Robert Gabriel Mugabe” não era Robert Gabriel Mugabe – e
sim Jacob Mudenda, porta-voz do Parlamento. Pouco importou se o
verdadeiro Mugabe estava preso em casa, em situação de quase golpe
militar, havia seis dias. Quando Mudenda leu a palavra “renúncia”, na
tarde do dia 21, aplausos, gritos e assovios explodiram nas ruas da
capital, Harare. A renúncia era um gesto esperado, mas esperado há tanto
tempo que, ao acontecer, tornou-se surpreendente. Mugabe ocupava o
poder havia 37 anos.
Em 1980, Mugabe representou a esperança de
paz na África após um século de colonização europeia. As batalhas de
descolonização costumavam se desdobrar em lutas internas pelo poder
recém-conquistado. Um dos últimos países da região a declarar
independência, o Zimbábue interrompeu esse ciclo de violência ao
convocar eleições transparentes para o Parlamento. Mugabe foi o primeiro
negro a assumir o poder, em uma ex-colônia africana, por vias
democráticas. A história de Mugabe lembra a do líder sul-africano Nelson
Mandela. Os dois nasceram em famílias negras de classe média. Mugabe em
1926, Mandela em 1918. Os dois foram educados em escola religiosa e
frequentaram a mesma universidade. Mandela formou-se advogado. O
católico Mugabe tornou-se professor e marxista. Os dois pegaram em armas
contra elites locais de origem inglesa. Os dois foram presos: Mugabe
por 11 anos, Mandela por 27. Os dois perderam um filho quando estavam na
prisão e foram impedidos de assistir ao funeral. Os dois foram eleitos
governantes de seus países com um discurso de conciliação entre a
maioria negra e a elite branca. Mandela cumpriu a palavra. Mugabe, não.
“Mandela foi longe demais em fazer o bem a comunidades não negras,
muitas vezes à custa dos negros. Isso é ser santinho demais”, disse
Mugabe sobre Mandela. “Vimos a falência de liderança no nosso vizinho
Zimbábue”, disse Mandela sobre Mugabe. “Enquanto Mandela usou seus anos
na prisão para dialogar com governantes brancos e derrotar o apartheid,
Mugabe saiu da prisão determinado a superar a sociedade branca na base
da força”, diz o historiador Martin Meredith, autor de biografias sobre
os dois líderes. Mandela ganhou o Prêmio Nobel da Paz. Mugabe disse que a
vitória militar seria “o maior dos prazeres”. Nos anos seguintes à
eleição que poderia pacificar o Zimbábue, mais de 20 mil pessoas
morreram numa guerra civil. De vários grupos políticos, restou um só: o
ZANU-PF, partido de Mugabe.
Quando Mugabe assumiu o poder, o Zimbábue era o segundo país mais
próspero do continente africano, com força na agricultura e na
exportação de minerais, como diamantes e platina. No ano 2000, porém, a
polarização racial cultivada por Mugabe produziu um desastre. O governo
instituiu um programa que permitia a negros invadir terras de
fazendeiros brancos. Com a desorganização do agronegócio e sanções da
comunidade internacional, a economia local entrou em colapso. Em 2008, a
inflação alcançou 231.000.000% ao ano. Os preços dobravam a cada duas
semanas. A moeda era tão desvalorizada que o Banco Central chegou a
imprimir, para o uso cotidiano, notas de 100 trilhões de dólares
zimbabuanos. “Alguns de vocês certamente têm no bolso mais do que o
governo tem em caixa”, disse em 2013 o ministro das finanças, Tendai
Biti, ao anunciar que o país tinha apenas US$ 217. Segundo a Organização
Mundial da Saúde, a expectativa de vida dos homens do país caiu de 54
anos, em 1997, para 36 anos, em 2007. Uma epidemia de cólera deixou mais
de 4 mil mortos, em 2009. Segundo a Organização das Nações Unidas,
cerca de 1,7 milhão de habitantes passavam fome. Ajudas da vizinha
África do Sul e da China impediram o colapso do país. Para evitar
revoltas populares, Mugabe instrumentalizou a miséria do povo de
Zimbábue. “Para receber comida, você precisa entregar a carteira de
identidade às autoridades até depois da eleição”, disse em 2008 James
McGee, embaixador dos Estados Unidos em Harare. “O único jeito de comer é
abrir mão de votar.” Com fraudes e controle férreo da oposição, Mugabe
manteve a realização de eleições – foram nove desde 1980, todas vencidas
por seu partido. “Não importa quanta força você tenha, esse território é
meu e vou me agarrar a ele até a morte”, disse em 2001. “Só Deus, que
me pôs aqui, vai me remover”, disse em 2008. Tirano dentro do país,
Mugabe honrava os contratos de exportação de diamantes e arrefecia as
pressões internacionais.
O
discurso de ódio que ajudou a manter Robert Mugabe no poder, pouco a
pouco, voltou-se contra ele e sua vida faustosa. O jornal britânico The Guardian estima sua riqueza pessoal em US$ 1 bilhão. O jornal local The Citizen
afirma que ele está construindo no país uma casa com 25 quartos,
avaliada em US$ 9 milhões. Em Hong Kong, sua família reclama na Justiça a
posse de uma casa avaliada em US$ 5 milhões. O filho mais novo de
Mugabe, Bellarmine Chatunga, publicou no Instagram uma foto com um
relógio e a legenda: “$ 60 mil no pulso quando seu pai manda no país
inteiro, sabe como é!!!”. A primeira-dama, Grace Mugabe, é conhecida
como “primeira-compradora”, “DisGrace” ou “Gucci Grace”, por seu gosto
por artigos de luxo. “O povo poderia ter se fartado de Mugabe por causa
de seus próprios defeitos”, diz Jane Morley, analista da consultoria
Economist Intelligence Unit, “mas Grace e seus hábitos de consumo foram o
que finalmente levou o povo ao limite”.
Com a saúde debilitada,
aos 93 anos, Mugabe tentou transferir o poder a Grace, 41 anos mais
jovem. No início do mês, destituiu Emmerson Mnangagwa da
Vice-Presidência e nomeou a primeira-dama. Parceiro de Mugabe desde a
guerrilha, Mnangagwa era tido como o herdeiro natural do poder.
Demitido, fugiu do país e articulou o golpe. O Exército prendeu Mugabe
em casa, no dia 15, e exigiu sua renúncia. No sábado, dia 18, o
presidente foi à TV e discursou por longos 19 minutos – que pareceram
ainda mais longos com a habitual pronúncia arrastada. “É verdade que uns
poucos incidentes podem ter ocorrido aqui e ali, mas estão sendo
corrigidos”, disse. “Ergue-se do encontro de hoje um forte senso de
colegialidade e camaradagem, agora unindo os vários braços do nosso
aparato de segurança.” Os militares ao lado do presidente, contudo, não
expressavam camaradagem. Ao contrário.
No dia seguinte ao discurso
de não renúncia, o partido expulsou Mugabe e elegeu Mnangagwa seu novo
líder. Na manhã da terça-feira, dia 21, os ministros de Mugabe faltaram à
reunião semanal de gabinete. Foram ao Parlamento pedir o impeachment,
pela acusação – facilmente comprovável em pesquisas no YouTube – de
Mugabe dormir durante eventos oficiais. Horas depois, o líder que falou
que jamais renunciaria renunciou por escrito. Terceiro presidente mais
longevo do mundo, em 37 anos Mugabe tornou-se um exemplo de tudo aquilo
que prometeu combater. Já vai tarde.
(MarceloMoura/Época)
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