O telefone tocou na noite da véspera de natal. Era uma repórter cearense. Dona Zeneide recebeu a notícia: Luiz estava bem depois de ter ficado mais de quatro dias à deriva no mar.
 
O operador de máquinas Luiz Antônio de Brito, de 59 anos de idade, é um dos oito sobreviventes ao naufrágio do navio pesqueiro Rei Arthur, ocorrido no amanhecer do dia 20 passado na costa do Rio Grande do Norte. Ele e os colegas de ofício saíram para pescar, mas foram surpreendidos por um acidente que os deixou em mar aberto até o fim da tarde do dia 24.
 
// Luiz Antônio de Brito, operador de máquinas do navio pesqueiro Rei Arthur, e a esposa Zeneide: retorno para casa no dia de natal
 
De banho tomado e sentado no sofá de casa, na praia do Meio, ainda com muitas dores nas costas e nas pernas, Luiz comemorava o retorno ao lar com os familiares. Emocionado, lembra-se dos momentos que passou à deriva com os companheiros e das dificuldades que enfrentaram. “Nós agora temos uma nova vida, nascemos de novo”.
 
Dos terríveis momentos que passou dentro d’água, sem saber se voltaria para casa, ele recorda que tentou manter a fé e o pensamento na família para arrumar forças e continuar resistindo às intempéries do mar. “Mas eu vou falar a verdade para vocês: no dia em que resgataram a gente, eu já estava sem esperanças”.
 
//Pescador revela que estava perdendo a esperança quando foi resgatado
 
Tudo começou quando a tripulação percebeu que o barco Rei Arthur estava sendo invadido pela água. “Saímos no dia 19 (m sábado) e ia tudo bem, até o amanhecer do dia 20, por volta das seis horas, o navio começou a adernar de um lado”, conta o operador de máquinas, recordando do momento que a tripulação percebeu que havia algo de errado.
 
Seu Luiz então foi até a casa das máquinas para ver o que estava acontecendo. “A inundação já estava muito rápida. Subi e falei para o comandante que não tinha mais jeito, que a água estava muito forte”, relatou. “Tenho certeza que foi uma chapa lá na proa que rompeu e a água misturou-se com as urnas de gelo, que são muitas para conservar os peixes, então a água salgada se misturou com a água do gelo e a inundação foi mais rápida”, calcula.
 
O operador de máquinas conta que, ao informar ao comandante a situação, ele virou o timão para o lado contrário, numa tentativa de equilibrar o barco. Não obteve sucesso. A tripulação então cortou os cabos da bóia inflável e arremessou o equipamento ao mar. A bóia se assemelha a uma barraca. Depois que todos já estavam no bote-casa, se deram conta de que o comandante do barco não havia conseguido chegar. 
 
“Retornamos à embarcação novamente, ela já desaparecendo. O comandante estava preso dentro do comando, com água no peito. A água muito forte puxava ele para baixo, mas conseguimos resgatar ele”, conta.
 
Depois que todos conseguiram chegar à bóia, a tripulação ainda ficou aproximadamente 3h vendo o barco afundar por completo. “Depois que o barco desceu, ninguém viu mais, ficamos por conta de Jesus no meio do mar”.
 
À deriva, a equipe não sabia para onde a correnteza guiava a bóia. Havia um botijão de água de 20 litros para os oito e algumas rações para a alimentação dentro do equipamento de salvamento. “No primeiro dia não ficamos muito apavorados, porque sabíamos que a bóia tinha resistência e foi feita para esse tipo de situação. A gente sabia que estava seguro ali por uns três dias”, revela.
 
Mar adentro, à deriva
 
O tempo era ruim, muita chuva e raios, com ondas de até três metros de altura. Atormentado pela escuridão e pela falta de perspectivas mar adentro, Luiz recorda que passou por muitos momentos de medo. “Foi aí que começou a vir aquele medo em todo mundo, só que a gente não podia passar um para o outro que tava com medo, para não piorar a situação”, diz.
 
No segundo dia, a fúria marítima e o peso sobre a bóia fez com que o equipamento começasse a ceder, permitindo a entrada de água. A tripulação então precisou usar remendos para conter o fluxo. No terceiro dia, a bomba usada para inflar o equipamento quebrou e não era mais possível reabastecer de ar a bóia. A situação se agravava e Luiz diz que cada vez era mais difícil acreditar que poderiam ser resgatados.
 
“Do terceiro para o quarto dia o tempo piorou muito. Muito vento, chuva, trovões. Olhei para um colega e disse para fazermos uma corrente e orar, porque agora só Deus. ‘Se tiver de morrer, vai morrer todo mundo junto, afundar os oito de uma vez só’, eu disse”, recorda emocionado.
 
Os oito estavam de mãos dadas e com um cabo amarrado na bóia. “Porque se um descesse sozinho pro fundo, o pânico ia ser maior entre os outros”, explica Luiz. No amanhecer do quarto dia, o mar acalmou. “Parecia uma piscina, Deus estava com nós”. Os tripulantes abriram o equipamento para tomar sol, porque a noite havia sido de muita chuva. Então veio a terrível surpresa, segundo contou o operador de máquinas. 
 
“Foi quando apareceu o peixe, né? O tubarão”. Apavorados com a presença do maior caçador dos mares, eles tentavam manter a calma sem fazer movimentos bruscos para que o peixe fosse embora. “Ele deu duas voltas em torno da bóia, mas eu acho que ele tava de barriga cheia e não quis mexer com nós. Deu a volta e seguiu. Mas ali foi a mão de Deus, para afastar ele de nós”.
 
Nesse momento, Luiz lembra que já tinha delírios por conta da debilidade do corpo. “Eu dizia que estava com frio e ia na casa da minha irmã buscar um lençol”, recorda.
 
No dia seguinte, 24 de dezembro, o cano da bóia estourou e o equipamento começou a secar. Era entre 11h e 12h, mas chovia e o céu estava nublado. “Fazia muito frio”, afirma Luiz. O fundo da bóia rompeu e os oito precisaram cair no mar. “E aí o desespero foi maior. A gente olhou um para o outro e não disse nada. Sabia que a morte podia acontecer a qualquer momento”.
 
Só com o pescoço para fora da água, Luiz diz que ficou com uma mão agarrada na bóia e usava a outra para nadar, assim como também fizeram os demais. “O cozinheiro, que estava do meu lado, disse ‘Luiz, eu vi ali um barco’. Eu disse que ele estava delirando, pois ninguém via”. Já era fim de tarde daquele mesmo dia quando a embarcação Rio Prata visualizou os náufragos.
 
Depois do aviso do cozinheiro, os demais também conseguiram enxergar o barco. “Só que o barco estava muito longe, não tinha condições da gente nadar até ele”, recorda. Os oito então viraram a bóia para a frente da embarcação, na tentativa de que o reflexo do sol na água ajudasse os tripulantes a ver o equipamento, que tem cor laranja. Deu certo.
 
A embarcação chegou já perto do anoitecer. O medo dos oito homens à deriva era que escurecesse, por conta do frio que fazia naquele dia, que seria piorado pelo fato de agora estarem todos dentro d’água.
 
O barco Rio Prata socorreu todos e os levou para Fortaleza, onde foram atendidos na Unidade de Pronto-Atendimento (UPA). Luiz chegou em casa no dia 25 de dezembro e Dona Zeneide diz que o retorno foi o melhor presente de natal que a família poderia receber. “Eu nasci novamente, no mesmo dia do nascimento de Jesus”, comemora.
 
Omissão de socorro
 
“Foi má vontade. Eu vi eles respondendo os nossos sinais, usamos todos os sinalizadores com esses barcos que vimos passar, eu mesmo soltei o último. Esses equipamentos iluminam tanto o barco de quem passa quanto de onde partiu o disparo”, lamentou o operador de máquinas Luiz Antônio de Brito. Luiz se refere às cinco embarcações que passaram por ele e seus companheiros, mas não prestaram socorro. “Navios grandes, daqueles petroleiros”, disse.
 
A Marinha do Brasil, inclusive, anunciou no sábado (26) que vai apurar, além do motivo no naufrágio, se houve omissão de socorro por parte dos navios que passaram por perto dos oito homens.
 
A Marinha quer saber se os comandantes se furtaram de oferecer o salvamento a eles e se houve algum comunicado por rádio antes do resgate. O inquérito segue no âmbito das forças armadas. “Tem que investigar mesmo, para saber o que aconteceu. Por que não foram nos resgatar?”
 
Apesar do trauma, ele já planeja o retorno aos mares para meados de janeiro. “Foi o mar que me deu tudo, minha casinha, o meu carrinho para andar. Eu não tenho medo do mar e é de lá que eu tiro o meu sustento”, confessa.