domingo, 23 de novembro de 2014

Ebola: do pânico à paranoia. Com medo de um dos vírus mais fatais já descobertos, governos aprovam medidas extremas, colocando em quarentena até quem não está infectado. Por que essa política não ajuda a combater a epidemia

VÍRUS EBOLA

 BRUNO CALIXTO
Em Serra Leoa, um dos países mais afetados pela epidemia de ebola, um cartaz diz: "Mate o ebola antes que o ebola mate você" (Foto: Michael Duff/AP)
Um vírus novo e perigoso aparece e começa a assustar a população. Sem saber como reagir, governos adotam medidas extremas, colocando pessoas que não estão infectadas em quarentena. Setores da população, considerados como "grupos de risco", passam a ser alvo de preconceito e discriminação em escolas, universidades ou no ambiente de trabalho. Essa é uma descrição do que aconteceu quando se descobriu o vírus da aids, na década de 1980 – mas pode muito bem se referir a forma com que muitas autoridades estão tratando o vírus ebola, em 2014. Segundo especialistas, autoridades de vários países estão adotando medidas exageradas para combater o ebola, como ocorreu no passado com a aids, e essas medidas causam dano e não resolvem o problema.

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A comparação entre as respostas às epidemias de aids e ebola é feita pelo professor da Universidade de Yale, Gregg Gonsalves. Ele publicou um artigo na revista científica The New England Journal of Medicine classificando a reação ao ebola nos Estados Unidos como fruto do pânico e paranoia. À reportagem de ÉPOCA, Gonsalves explicou seu argumento. "No início da epidemia de aids, grupos inteiros de pessoas foram alvo de discriminação e ódio nos EUA, como gays, hemofílicos, haitianos e usuários de drogas. Hoje, com o ebola, os alvos da discriminação são profissionais de saúde e africanos", disse o pesquisador, que também é ativista nos direitos das pessoas infectadas com aids. "A diferença entre aquela época e hoje é que, na década de 1980, havia uma epidemia real de aids nos Estados Unidos, enquanto hoje são apenas quatro casos de ebola no país."

Os casos de medidas exageradas são destacados com frequência na imprensa americana. No início do mês, por exemplo, 30 médicos, incluindo um da Organização Mundial da Saúde (OMS), foram proibidos de participar de uma conferência em Nova Orleans porque estiveram em países afetados pela epidemia. Nenhum deles teve ebola. Há casos de universidades que cancelaram bolsas de estudantes africanos ou de pais que tiraram filhos da escola porque o diretor tinha visitado um país africano – mesmo que o país estivesse do outro lado do continente, onde não há epidemia. Nas redes sociais, os internautas até criaram um neologismo para definir esse tipo de situação: "ebolanoia".

 

Ebola 19/11 (Foto: Giovana tarakdjian)
Quando a paranoia chega aos mais altos níveis da administração pública, temos problemas ainda maiores. Pelo menos dez Estados americanos aprovaram medidas restritivas em relação ao ebola, incluindo Nova York e Califórnia. Segundo Gonsalves, essas medidas não são eficientes porque não seguem o que a ciência define como forma coerente de enfrentar o vírus. Segundo ele, ao menos nos Estados Unidos a paranoia do ebola está mais relacionada ao contexto político do país – os EUA acabaram de passar por eleições legislativas – do que pelo que diz a ciência sobre como tratar pacientes do ebola. "Isso foi estimulado, de forma sensacionalista, por políticos que queriam aparecer durante as eleições", diz.

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O caso mais célebre foi a disputa política entre a enfermeira Kaci Hickox e os governadores de Nova Jersey e Maine. Kaci trabalhou com a organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) em Serra Leoa, um dos países africanos mais afetados pelo ebola. Quando voltou aos Estados Unidos, foi colocada em quarentena pelo governo de Nova Jersey, mesmo sem ter sintomas. Isso é um detalhe importante, porque o ebola só é transmitido na fase em que a pessoa apresenta sintomas. Kaci depois voltou ao seu Estado natal, Maine, e entrou numa disputa política com o governo local, que queria obrigá-la a passar um período de 21 dias em quarentena voluntária em sua casa, evitando locais públicos. No fim, ficou claro que ela nunca teve o vírus e não era uma "ameaça" ao país. Casos como esses se repetem em outros países. No mais recente, na Índia, um paciente já curado do ebola e sem nenhum traço do vírus no organismo foi barrado no aeroporto de Delhi.

Essas medida são, muitas vezes, propostas com boas intenções – a tentativa de evitar espalhar um vírus perigoso. O problema é que elas fazem mais mal do que bem. Além de comprometer os direitos individuais das pessoas, dificulta o trabalho de quem realmente está fazendo algo para enfrentar o ebola.

A organização Médicos Sem Fronteiras é uma das mais respeitadas no trabalho voluntário de saúde no mundo, a ponto de ter ganhado o Prêmio Nobel da Paz em 1999. A organização já estava na África quando o surto de ebola começou, tratando pacientes de malária, e rapidamente passou a tratar os doentes do ebola. Segundo a MSF, a reação exagerada ao vírus compromete o trabalho da organização. "Colocar em quarentena todos os profissionais de saúde que retornam da África Ocidental é, por consenso médico e segundo a evidência científica, uma resposta desnessária e desmedida", diz Maria Rodrigues Rado, diretora da unidade médica de Médicos Sem Fronteiras no Brasil.

Maria Rodrigues acredita que a melhor forma de combater o vírus ebola é tratar os pacientes nos países onde há epidemia. No momento, são apenas três, todos eles no oeste da África: Guiné, Libéria e Serra Leoa. Juntos, eles concentram mais de 12 mil casos. São países que precisam de recursos, infraestrutura, como hospitais e centros de atendimento, remédios e médicos. Muitos médicos, todos dispostos a enfrentar a crise. Ao impor restrições para os médicos que trabalham nesses países voltarem para casa, os governos acabam tirando os incentivos para novos voluntários ou profissionais irem para a África enfrentar o ebola na sua origem.

Ebola países  (Foto: Época)

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