COMPORTAMENTO
ALEGRIA, ALEGRIA - Festa no Reino Unido: milhares de pessoas e nenhum cuidado com o contágio. Reprodução/BBC
Há cerca de um mês, o celular de A.V., 19 anos, morador de Porto
Alegre, vibrou com uma notificação do WhatsApp. Eram 20 horas de sábado,
e a mensagem continha a revelação de um segredo muito aguardado: o
endereço de uma chácara nos arredores da capital gaúcha. Poucas horas
depois, o jovem chacoalhava o corpo, embalado por música eletrônica, em
uma pista de dança improvisada no jardim da casa alugada para a festa
com 300 pessoas. Em plena pandemia, raves clandestinas, que reúnem muito
mais gente do que o permitido no relaxamento da quarentena — entre
vinte e cinquenta pessoas na maioria dos países —, sem máscara nem
distanciamento, vêm sendo realizadas mundo afora por festeiros exaustos
do confinamento, em um comportamento de risco que pode levar ao contágio
pelo novo coronavírus. “Fui a três festas na quarentena. Sei que é
errado, mas faz muita gente feliz”, relata A.V., que prefere não
divulgar o nome completo.
As baladas para pequenas multidões, organizadas por
produtores profissionais, foram suspensas junto com toda e qualquer
forma de entretenimento em grupo por causa da pandemia. Mas não
desapareceram, longe disso — simplesmente caíram na clandestinidade das
redes sociais. “Nesse tipo de ambiente, é impossível manter o
distanciamento social, a melhor forma de proteção contra o vírus”, diz
Maria Paula Zanatto, médica infectologista do Hospital das Clínicas da
Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto. A mobilização e o planejamento
transcorrem sigilosamente, em grupos de WhatsApp e nos perfis no
Instagram, conduzidos por pessoas de quem poucos sabem o nome. Para não
correr o risco de ter a festa interrompida pela polícia, elas só
divulgam o local em cima da hora, da mesma forma que a senha para
entrar.
No Brasil, o ingresso oscila entre 10 e 15 reais, já que o objetivo não é ganhar dinheiro e sim fritar
(no jargão da noite) durante horas ao som de tecno, trance e outros
ritmos alucinantes. Em algumas festas, a bebida está incluída no preço.
Em outras, cada um leva o que vai consumir. A duração varia, mas pode se
estender pelo fim de semana. Alguns promotores oferecem máscaras e
álcool em gel, mas seu uso vai minguando à medida que o consumo de
bebida e outras substâncias aumenta. “A paquera rola solta e pouca gente
pensa em contaminação”, diz A.V.
Mesmo clandestinas, há baladas que acabam saindo do anonimato. Uma
mansão luxuosa às margens da Represa de Guarapiranga, na Zona Sul de São
Paulo, foi alvo de denúncias por vizinhos devido às farras frequentes,
no início de julho. Em outra ocasião, a polícia impediu que o sertanejo
Bruno, da dupla com Marrone, se apresentasse em uma festinha vip em
Caldas Novas, Goiás. Na madrugada de sábado 18, a Polícia Militar
interrompeu uma festa com mais de 150 pessoas em Jaguaruna, no sul de
Santa Catarina.
Irresponsabilidade pura, mas que não surpreende ao fim
de um período de privação. “A transgressão e o perigo são excitantes. A
negação da morte traz prazer tanto pela adrenalina quanto pela sensação
de estar acima de tudo o que está acontecendo”, explica a psicanalista
Luciana Saddi.
Também na Europa e nos Estados Unidos os planos de abertura
controlada vêm sendo atropelados pelos convescotes proibidos. Portugal,
um dos países que tiveram sucesso no controle da pandemia, precisou
intensificar a fiscalização e até fechar áreas no litoral de Lisboa por
causa da multiplicação das festas. “Vamos nos reunir para compartilhar
amor, vibes e música”, dizia um convite em terras lusitanas, sem
mencionar o compartilhamento do vírus.
No Reino Unido, são tantas as denúncias de free parties que
se fala em um novo “verão do amor”, alusão aos encontros movidos a sexo,
drogas e rock’n’roll notabilizados pelo movimento hippie nos anos 1960.
“Cumpri treze semanas de autoisolamento e estava ficando louco”, disse a
VEJA Robert Milner, DJ britânico que aplacou a ansiedade e a depressão
organizando uma festa clandestina em Leeds, no norte da Inglaterra. Por
meio do aplicativo Snapchat, ele e amigos reuniram cerca de 3 000
pessoas debaixo de uma ponte, no meio de uma floresta. Milner planeja
uma segunda rave, ainda maior. “No começo, tinha medo de pegar o vírus,
mas vi que as pessoas se aglomeravam em praias e protestos de rua sem
haver pico de casos e passei a duvidar do potencial de infecção”,
justifica, sem amparo na ciência.
O ceticismo em torno da gravidade da pandemia elevou a imprudência a um novo patamar, com a divulgação das corona parties,
feitas exatamente para os participantes se contaminarem. O primeiro a
testar positivo ganha um prêmio — e, supostamente, imunidade. Pelo menos
uma pessoa morreu no Hospital Metodista de San Antonio, no Texas,
depois de se infectar em uma roleta-russa dessas. “Festas de grande
porte só serão seguras depois que uma vacina contra a Covid-19 for
desenvolvida e amplamente aplicada”, decreta Eliseu Waldman, professor
de epidemiologia da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São
Paulo. Antes disso, dançar na pista apinhada como se não houvesse amanhã
pode resultar exatamente nisso: o amanhã não chegar.
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