Há 20 anos a Rua Chile inaugurava a sua primeira e até então única
restauração. O projeto remoldurou a vida cultural da capital potiguar,
que encerrou a década de 90 como o reduto de bares e pubs emblemáticos.
Duas décadas depois, pouca se salvou e apenas dois empreendimentos
continuam funcionando. O NOVO reconta esta história e traça um “Raio X”
da atual situação do local.
Procurado pela Secretaria de Turismo e Cultura da época, em 1996, o
arquiteto Haroldo Maranhão foi o responsável por realizar o projeto de
restauração que ele começou a esboçar quando ainda era estudante do
curso de arquitetura na UFRN e apresentou como Trabalho de Conclusão de
Curso uma revitalização para o bairro da Ribeira. Era década de 80 e o
assunto pouco discutido.
“Por conta do meu TCC me chamaram para conduzir um projeto que
inicialmente iria apenas pintar a fachada das casas voltadas para o rio,
então eu propus um estudo mais fundo, de revitalização mesmo da rua, e
assim o projeto foi reformulado”, conta sobre a pesquisa iniciada no
começo dos anos 90, interrompida por alguns anos e retomada apenas em
meados de 95.
Descascando todas as fachadas, Haroldo descobriu junto com seu
escritório a verdadeira arquitetura de todos os prédios cujo orçamento
de revitalização permitiu, 45 casarões exatamente, localizados entre o
largo da Rua Chile até o encontro da rua com a Avenida Tavares de Lira.
Na época o centro histórico de Natal não era tombado como patrimônio
histórico nacional, o que só veio acontecer em 2010.
“Nós trabalhamos todo um conjunto arquitetônico e o impacto daquilo
foi imediato porque foi apenas depois disso que o olhar da cidade se
voltou pela primeira vez para a questão patrimonial. Antes só se pensava
nisso através das crônicas de Câmara Cascudo ou Vicente Serejo”, diz,
mencionando ainda como uma das consequências imediatas a formulação
antes inexistente de passeios escolares pelo local.
“O que dói desde a época em que estávamos fazendo o projeto é que
sabíamos da descontinuidade política, tanto que está completamente
abandonada pelo poder público até hoje, como você bem me lembrou ao
entrar no escritório, há 20 anos”, comenta o arquiteto, remexendo em
gavetas antigas à procura de fotos históricas de como a Rua Chile estava
antes do projeto de restauração.
Na opinião de Haroldo, o essencial agora para a Rua Chile e o
bairro da Ribeira, como um todo, é a aproximação do poder público. “Você
não vê a presença do poder público no local. É inexistente em todas as
questões que lhe compete, como segurança, paradas de ônibus, coleta de
lixo e outros vários fatores”, opina, mencionando ainda a importância da
“Lei Operação Urbana Ribeira”, caducada desde 2014, que isentava de
impostos os estabelecimentos comerciais do bairro.
“Era uma lei que permitia ao empresário disposto a investir na
Ribeira a isenção de impostos, como IPTU, ISS e outros... E isso é muito
importante para atrair novos agentes, sem falar de novos investimentos
em moradia também para o surgimento de farmácias e padarias, por
exemplo”, ilustra.
Desafio de resistência
Atualmente com apenas dois pubs em funcionamento constante, o
“Ateliê Bar” e o “Centro Cultural Dosol”, a Rua Chile ainda permanece
como a opção mais certeira aos que desejam ouvir música autoral
potiguar, ou fazer parte do movimento de resistência cultural no bairro,
que se estende à sua rua vizinha, Frei Miguelinho, onde funcionam: A
BOCA Espaço de Teatros, Casa da Ribeira, Espaço A3 e Giradança.
“É uma batalha diária ter um espaço na Ribeira, e uma prova de
resistência cultural/respeito com a história da cidade”, explica
Anderson Foca, idealizador do Centro Cultural Dosol, às vésperas de mais
uma edição do Festival Dosol, que entre os dias 11 e 13 de novembro vai
levar para a Rua Chile mais de 70 shows.
“Acho que enquanto o poder público não olhar a Ribeira com o
potencial que o bairro tem vamos sempre ficar nessa corda bamba
interminável. As vezes rindo, as vezes chorando mas sempre pronto pra
estar lá”, comenta Foca, revelando que um dia o Festival Dosol também
pode deixar o bairro.
“Penso em uma edição fora da Rua Chile, mas não por causa da
Ribeira em si, e sim pela logística de receber artistas, tamanho dos
palcos e coisas do tipo. Temos um sonho de fazer o dosol na praia, de
dia e coisas assim. Mas a ribeira continuará sendo a principal
incubadora do dosol e dos artistas da cidade”, explica.
Na opinião de André Maia, idealizador do Ateliê Bar, algumas
melhorias pontuais foram observadas na Rua Chile recentemente, como a
iluminação de LED instalada no largo.
“É claro que isso precisa se estender a todo o bairro, mas ajudou
bastante. A segurança também melhorou, mas está muito além do que um
centro histórico precisa, no mínimo um posto policial fixo”, comenta,
mencionando o Terminal Marítimo de Passageiros de Natal, concluído desde
julho de 2014, mas nunca aberto a população.
“É um grande elefante branco, o que é um absurdo porque poderia ser
um dos principais motivos para impulsionar a economia da área”, afirma o
dono do estabelecimento que vem funcionando de quintas a domingos e nas
quartas-feiras uma vez por mês, sempre com shows e outras ações
bastante frequentadas.
"Nos tempos de Blackout”
O professor de História Carlos Henrique Pessoa Cunha avalia que a
efervescência da Rua Chile durou de 1997, com o surgimento do
emblemático “Blackout” até meados de 2002, como ele conta em seu livro,
fruto de sua dissertação de mestrado em História, “Nos Tempos de
Blackout” (Jovens Escribas/2014).
“Foi a restauração dos casarões que impulsionou o processo de
reocupação da rua pelos agentes de cultura. A reforma em si, aliás, não
deu garantias de que a rua seria revivida, e sim o surgimento dos bares,
em especial o Blackout que se tornou emblemático”, opina citando o bar
já fechado nos dias atuais.
Ainda de acordo com o professor a maior diferença da Rua Chile no
final dos anos 90 para a atual Rua Chile é a periodicidade das ações. “O
que existem hoje por lá são eventos culturais, como a Virada Cultural, o
Circuito Ribeira, o Festival Dosol, mas falta a periodicidade das
ações. Diferente do final da década de 90, quando independente do dia
sempre tinha algo de bom rolando na Ribeira em vários pontos
diferentes”, compara.
O professor observa ainda que a movimentação cultural da Rua Chile
existiu desde o começo do século XX, dando “uma esfriada” apenas entre
os anos 70 e 80, até ressurgir em 1996. “Foi um período que a rua serviu
apenas para oficinas, peixarias, fábricas de gelo...”, diz, frisando a
importância que a Rua teve na visibilidade às bandas de Rock autoral da
cidade.
“Sempre existiram bandas de rock autoral na cidade durante a cena
Rock 90, vide “Modus Vivendi”, “Cabeças Errantes”... o que faltava era
um lugar para elas se apresentarem e esse foi o maior mérito da Rua
Chile desde o seu ressurgimento. As bandas começaram a receber cachês,
gravar discos, a ganhar visibilidade”, conta.
O historiador é mais um que defende a necessidade de ações mais
efetivas do poder público no local para que ele consiga prosperar. “Não
apenas no financiamento das ações culturais, mas também para estrutura e
para o fortalecimento do turismo de centros históricos assim como
existe nas principais cidades do país”, opina.
“Aqui o turista nunca vai para a Ribeira e o próprio natalense
evita porque não tem segurança, iluminação, o que é uma pena já que a
Rua Chile é privilegiada porque tem espaço para estacionar, locais para
bons palcos e ainda o fato de não haver vizinhança que seja perturbada
com a realização dos eventos”, conclui.
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