PALCO BRASIL
Conrado Carlos
Editor de cultura
Uma das passagens mais emocionantes de “Estrela Solitária – Um brasileiro chamado Garrincha”, de Ruy Castro, é a chegada do craque do Botafogo à cidadezinha de Pau Grande, no interior do Rio, acompanhado de Elza Soares, então sua amante. Sua esposa Nair o esperava em casa com uma penca de filhos (tiveram nove). Para variar, naquele dia Mané estava muito doido. Queria chamar a atenção com o carro novo e a cantora famosa em meio aos rústicos. Seria a humilhação completa para a ex-mulher, pessoa simples, sem glamour, ver o amado chegar com uma concorrência tão pesada. Mas a imundície da morada pobre que o jogador mantinha para a família, enquanto brilhava na capital, deixou Elza chocada.
Se foi instituto protetor feminino ou pura compaixão, não sei. Daquele momento em diante, porém, Nair recebeu melhorias materiais, e Garrincha levou uma descompostura por abandonar os filhos. Mais de 50 anos depois, a mulher que coletou parte do lixo psicológico de um dos maiores ídolos do esporte nacional estará em Natal para apresentar A Voz do Século – eleita pela BBC de Londres, em 2000. Será no próximo dia 15, no retorno das atividades do Teatro Riachuelo, após as festas de fim de ano. A abertura será com Isaque Galvão.
Elza teve um ano difícil. Ainda em janeiro, fez a segunda cirurgia para amenizar efeitos da queda do palco do Metropolitan, em São Paulo, sofrida em 1999. Foram ‘instalados’ oito pinos, do cóccix ao pescoço, da mulher de 77 anos que encantou nos 60s com seu gingado e scats emprestados ao samba. Em shows recentes, um integrante da equipe ajuda na movimentação feita em passos lentos, muitos encenados quando já sentada em uma poltrona. “[...] não dá para ficar sentada, que nem dondoca na cadeira, só fazendo caras e bocas, né? [...]Sem cantar eu não sei viver. É minha alegria”, ela disse em entrevista para o UOL.
O drama físico é café pequeno para uma mulher negra que estampou manchetes como ‘caixa 2′ de homem casado, em uma época em que o machismo e o conservadorismo viviam em estado primitivo – a rusticidade de Nair, socada em um casebre a 200 km da Cidade Maravilhosa, aumentava a revolta do populacho com a traição armada pelo casal famoso. “Elza foi uma mulher muito à frente de seu tempo. Pagou caro por enfrentar o preconceito e assumir posturas contrárias ao estabelecido, mas entrou para a história cultural brasileira pela porta da frente”, destaca o sociólogo Alfredo Teixeira, também um aficionado por jazz e MPB.
Essa ‘modernidade’ a transformou em ícone para uma grande parcela de jovens, que a admiram a voz rouca e ousadia de enfrentar tabus. O show fará parte do projeto Palco Brasil e servirá para Elza mostrar que continua de pé e atenta aos gêneros que sempre frequentou – a saber, também jazz, hip hop, soul e até rock and roll. Um de seus projetos para 2015 é gravar a diva do blues, Billie Holiday e o gênio da melancolia, o trompetista Chet Baker. “Não quero nem pensar na morte dela, mas pela idade, saúde e pelo fato de Natal ver esse tipo de show uma vez perdida, pode ser uma das últimas chances que teremos de vê-la atuando”, conclui Alfredo.
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