
O ex-presidente do Uruguai José Mujica durante encontro com estudantes na concha acústica da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), no campus do Maracanã - Fernando Frazão/Agência Brasil/27.08.2015
Montevidéu - O ex-presidente do Uruguai José Mujica
deixou sua cadeira no Senado para se dedicar à "batalha das ideias", um
objetivo que é aplaudido no exterior, enquanto muitos em seu país
criticam a sua gestão de governo.
A estreia no Festival de Veneza do documentário
biográfico "El Pepe, una vida suprema", do cineasta sérvio Emir
Kusturica, colocará novamente o ex-presidente sob os holofotes
internacionais e provavelmente dividirá as pessoas que acompanham a sua
trajetória.
Aos 83 anos, o ex-guerrilheiro que presidiu o Uruguai
entre 2010 e 2015 talvez tenha perdido algo da fama que o acompanhou
pelo mundo em seus anos como presidente. Mas mantém intacto o carisma
que atrai multidões ao filosofar sobre o futuro de uma humanidade
consumista que contrasta com a sua vida austera.
No Uruguai continua sendo uma figura determinante na
política pelo peso de sua bancada parlamentar. Seu nome soa, inclusive,
como possível candidato a presidente em 2019.
Gestão questionada
Antes de terminar seu mandato, Mujica disse que
deixaria "dois ou três pacotinhos" para quem o sucedesse. Fazia alusão a
projetos a seguir, mas a frase alimenta seus críticos, que consideram
que deixou vários problemas, como um elevado déficit fiscal, um
engrossamento do Estado e uma dívida eterna em termos de educação.
Seus resultados macroeconômicos "foram ruins. Seu
governo terminou com um déficit fiscal de 3,5% do PIB, que colocou a
dívida pública em um caminho insustentável", opinou o economista liberal
Javier de Haedo à AFP.
"Mas seu estilo de governo foi ainda pior do que seus
números, (...) sem controle sobre o investimento público. Piorou a
educação, ou seja, a igualdade de amanhã, e a infraestrutura, e não
avançamos na integração necessária ao mundo".
O jovem deputado do Movimento de Participação Popular
(MPP) de Mujica, Sebastián Sabini, tem uma leitura oposta. Se olhar para
os índices econômicos "retrospectivamente" verá que "houve uma
importante geração de emprego, a diminuição da desigualdade e a melhora
no nível de renda". "Devem colocar tudo na balança para julgar a gestão
econômica", argumentou.
Direitos e dívidas
Embora continue sendo popular, no Uruguai muitos veem
com receio a possibilidade de um Mujica candidato. Um tenso cenário
econômico pesa tanto na equação como a proximidade do político com o
chavismo venezuelano.
Quem o aplaude destaca o seu papel na promoção dos direitos individuais.
"É inegável a contribuição do governo de Mujica em
termos de direitos humanos", considerou Sabini ao se referir à
legalização do aborto, ao casamento igualitário e à regulação do mercado
da cannabis, que habilita a venda de maconha legal nas farmácias, todas
essas medidas aprovadas durante o mandato de Mujica.
O país avançou na regulação do trabalho doméstico, nas
oito horas para os trabalhadores rurais, buscando melhorar a situação de
"setores desprotegidos", enfatizou.
O cientista político e colunista Francisco Faig opinou
que Mujica deixou dívidas importantes durante a sua gestão e longa vida
política.
"Mujica chegou com uma legitimidade dentro da Frente
Ampla, com uma circunstância econômica e prestígio internacional que lhe
teriam permitido liderar mudanças substanciais" no Uruguai, mas levou o
país a uma maior corrupção estatal, maior clientelismo. "Nenhuma
reforma a sério foi levada à frente nos temas importantes do país",
considerou Faig.
E a principal promessa de Mujica ao assumir a presidência - "educação, educação, educação" - nunca chegou.
Sobrevivente
Mujica é um sobrevivente humano e político. Esteve
preso desde antes do início da ditadura no Uruguai, em 1973, quando a
guerrilha que integrava, o Movimento de Libertação Nacional
(MLN-Tupamaros), foi desarticulada após vários anos de ações violentas,
assaltos, sequestros e assassinatos.
Afirma que 14 anos de prisão em condições subumanas na
ditadura lhe deram tempo para introspecção e definiram quem ele é. Hoje,
para este ex-guerrilheiro, "nada vale mais que a vida".
Em seu país, a crítica ao MLN por ter pego em armas
contra um governo eleito é sempre parte do debate. Mujica "ainda não
assume as enormes responsabilidades do MLN na queda da democracia",
recriminou Faig.
Na política, no entanto, Mujica se adaptou. Saiu da
prisão em 1985 ao começar o primeiro governo democrático de Julio Maria
Sanguinetti, mas foi apenas em 1995 que teve um papel ativo na política
tradicional, como deputado.
"O Mujica que conhecemos hoje combina o espírito jovem
que o levou a se deslumbrar com a revolução cubana (...) com o arsenal
de ferramentas e oportunidades oferecidas pelo antigo sistema político
uruguaio", que, por sua vez, "aprendeu a constranger Mujica ", concluiu o
cientista político da Universidade da República Daniel Chasquetti.
(Por
AFP)
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