sábado, 29 de outubro de 2016

A ditadura escancarada na Venezuela. Com a suspensão do referendo sobre a permanência do presidente Nicolás Maduro no poder, o chavismo se despe dos últimos vestígios de institucionalidade democrática. Uma solução pacífica para a crise venezuelana parece cada vez mais difícil

DITADURA QUE NÃO CAI
 O líder da oposição  Henrique Capriles comanda manifestação.Suspenção de referendo levou a protestos na rua (Foto: Ronaldo SCHEMIDT/AFP)
 Maduro no Vaticano.Anunciada a suspenção do referendo,ele bateu ás portas do papa,mas mediação não prosperou (Foto: MARCELO GARCIA/AFP)
Uma multidão tomou as ruas de Caracas, na quarta-feira (26), aos gritos de “revogatório, revogatório”. Faixas ilustradas pelas cores amarela, vermelha e azul, da bandeira da Venezuela, exigiam a realização de um referendo para decidir sobre a permanência ou saída do presidente Nicolás Maduro do poder. “Dia 3 de novembro, convido todo povo venezuelano para marchar até [o Palácio de] Miraflores”, bradou Henrique Capriles, um dos líderes da oposição ao chavismo, ao convocar os manifestantes para novos protestos.

“A tomada da Venezuela”, como foi chamado o movimento da semana passada, contou com protestos por todo o território venezuelano. O país, depauperado por uma arrasadora crise econômica, polarizado politicamente e governado por um regime crescentemente ditadorial, vive novos dias de fúria. O estopim da crise foi uma sucessão de medidas tomadas por Maduro e seus aliados chavistas para se aferrar ao poder. Em um espaço de três dias, o Conselho Nacional Eleitoral (CNE), controlado pelo chavismo, adiou as eleições regionais para governador, previstas para dezembro, e suspendeu o processo de convocação do referendo revogatório do mandato presidencial. Segundo a oposição, ao menos 120 pessoas ficaram feridas e 147 foram presas, em vários estados do país, nas manifestações da quarta-feira. Um policial também foi morto no estado de Miranda em circunstâncias ainda não esclarecidas. Uma greve nacional de 12 horas foi convocada pela oposição para a sexta-feira (28), sob ameaças de retaliações às empresas que aderissem ao movimento feitas por Diosdado Cabello,  ex-presidente da Assembleia Nacional e uma das principais figuras do chavismo.


A repulsa popular expressa nos últimos dias se deve ao fato de que a suspensão do processo de convocação do referendo retira da Venezuela um dos últimos vestígios de institucionalidade e de estado de direito que restavam ao país. A convocação de referendos de revogação para mandatos de cargos eletivos está prevista na Constituição venezuelana. Para levar adiante a reivindicação, são necessárias 200 mil assinaturas, o equivalente a 1% do eleitorado venezuelano. Em meio ao colapso econômico do país, os grupos oposicionistas não tiveram dificuldades para obter o apoio de 1,8 milhão de signatários, que enxergaram no referendo a possibilidade de uma mudança política pacífica e democrática. 

A oposição estava se preparando para alcançar 4 milhões de assinaturas numa segunda fase de convocação do referendo, prevista para a última semana de outubro, quando o órgão eleitoral venezuelano,  na quinta-feira (20), invalidou parte das assinaturas já recolhidas sob a suspeita de fraude. Numa decisão manchada pelo autoritarismo chavista, o Conselho Nacional Eleitoral acatou sentenças emitidas por tribunais penais em cinco estados. Constitucionalistas venezuelanos questionaram a competência das Cortes – penais, não eleitorais – para tomar a medida e chamaram a atenção para a semelhança dos pareceres emitidos por tribunais distintos. Numa evidente ação coordenada, a suspensão do processo do referendo também foi anunciada por cinco governadores, alinhados ao chavismo. “Se a denúncia de fraude fosse comprovada, os responsáveis, individualmente, deveriam ser investigados e sancionados. Mas o processo ainda permaneceria válido e deveria ter sido continuado. O que o CNE fez foi muito grave”, diz Luis Lander, do Observatório Eleitoral Venezuelano.

Ao suspender o referendo revogatório e adiar as eleições regionais para governador para 2017, Maduro tenta evitar a qualquer custo uma nova derrota nas urnas, como a que sofreu em dezembro de 2015, quando perdeu o controle da Assembleia Nacional. Enquanto faz o que pode para esvaziar o Legislativo, o presidente manobra para manter o que lhe resta de poder, enquanto o país derrete. Logo depois da bomba da suspensão do referendo, Maduro saiu correndo e inventou um tour-relâmpago internacional por países produtores de petróleo na Ásia e no Oriente Médio sob a justificativa de discutir medidas para “recuperar o preço justo” do barril.

Maduro viajou por cinco dias e passou pelo Vaticano para uma reunião com o papa Francisco – o pontífice está empenhado em mediar uma negociação entre o chavismo e a oposição. Como resultado da parada de Maduro em Roma, o enviado do papa à Venezuela anunciou um encontro entre governo e oposição, que seria realizado no domingo (30), na Ilha de Margarita, no Caribe. A iniciativa não durou nem  duas horas. “Não podemos ir a um processo de diálogo que signifique para o governo que aqui não muda nada”, disse Capriles. “Não se soluciona a crise sentando governo e oposição para tirar uma foto.” Capriles disse ter sido informado da iniciativa pela TV. Na Assembleia Nacional, a oposição iniciou um processo para julgar Maduro por “atentado à democracia”. Ao reagir, o presidente acusou a oposição de tentar um “golpe parlamentar”.

Impopular, Maduro sabe que não resistirá a uma consulta aos venezuelanos. As últimas pesquisas feitas pelo instituto Datanálisis, o mais confiável do país, apontam que cerca de 70% da população votaria pela saída do presidente. Por isso, Maduro trabalha para que o referendo não ocorra ou seja realizado depois de janeiro de 2017, quando a aprovação de sua saída não levaria a uma nova eleição, mas à ascensão de seu vice-presidente. Para manobrar, Maduro conta com a fidelidade dos militares venezuelanos, um bastião do chavismo. Em pronunciamento em cadeia nacional, o ministro da Defesa venezuelano, general Vladimir Padrino, acusou a oposição de querer instaurar “o caos e a anarquia”, com o objetivo, segundo ele, de “derrubar o governo legitimamente eleito de Nicolás Maduro”.

“Maduro prefere uma saída violenta para que possa se colocar como vítima. A população e a oposição seguem empenhadas para que isso não ocorra, mas há muitas armas na rua. Nos protestos, os coletivos militares do chavismo se apresentaram contra a população. Isso é confrontação”, diz a socióloga Margarita López Maya, da Universidade Central da Venezuela. “Hoje, o Executivo está disposto a levar a Venezuela a uma guerra civil.” Enquanto as tensões se acirram, o povo venezuelano agoniza. Um relatório da Human Rights Watch, publicado na semana passada, pinta um cenário de crise humanitária no país.  De acordo com o relatório, 76% dos hospitais públicos sofrem com a escassez de medicamentos básicos e 85% dos remédios só são encontrados no mercado negro a preços proibitivos. Pacientes com doenças crônicas como diabetes e câncer não encontram tratamento. Há também desabastecimento de produtos básicos, o que está afetando a capacidade da parcela mais pobre dos venezuelanos em se alimentar.

Mesmo diante da calamidade pública, Maduro se recusa a ceder e reconhecer os erros do chavismo – e acusa “agentes internacionais” de capitanearam uma “guerra econômica” contra a Venezuela. Com as manobras ditatoriais para reter o poder a qualquer custo, o risco de violência política só cresce. A realização do referendo era uma saída para evitá-la. Suprimir essa válvula de escape pode acelerar a trajetória do país rumo ao que pode virar uma assustadora explosão.

por: TERESA PEROSA/Época

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