CASO SININHO
Em uma pequena sala comercial no coração da Cinelândia, no centro do
Rio, funciona o escritório de Marino D’Icarahy. Ele comanda a assessoria
jurídica que defende 14 dos 23 manifestantes indiciados pela polícia
fluminense por atos violentos em protestos que tomaram as ruas cariocas
desde junho de 2013.
Entre os ativistas defendidos por D’Icarahy, talvez nenhum tenha
ganhado tanta visibilidade quanto a jovem porto-alegrense Elisa Quadros,
de 28 anos, batizada entre seus companheiros de militância como Sininho
pelo estilo espevitado e intenso a despeito da aparência frágil – a
exemplo da personagem de Walt Disney.
Elisa diz que não fala com a imprensa porque não lhe tem respeito.
D’Icarahy compartilha da opinião, mas aceitou que Elisa concedesse a
entrevista transcrita a seguir por motivos jurídicos: trata-se de uma
nova estratégia da defesa dos manifestantes, que agora, diante do clima
abertamente bélico que se instaurou entre ativistas e jornalistas, busca
humanizar as batalhas particulares de seus clientes.
Por 45 minutos, na tarde da última segunda-feira (28), Elisa conversou com a reportagem doiG
sobre sua vida como militante e afirmou que está em processo de
escrever um livro com o ex-marido, de quem se divorciou no início de
2013. A entrevista só aconteceu sob a condição de não se falar sobre o
inquérito.
Durante o tempo em que conversava com a reportagem, os outros jovens
também defendidos por D’Icarahy aguardavam em uma outra sala. Eles
chegaram todos juntos, e a maior parte vinha do mesmo compromisso: um
debate promovido, segundo Elisa, na Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ).
A entrevista abaixo, gravada, segue praticamente sem cortes ou edição, em uma decisão doiG para preservar integralmente o discurso e o raciocínio da entrevistada, que contou com intervenções pontuais de seu advogado.
iG: Como tem sido os seus últimos meses?
Elisa: A destruição da minha imagem começou em
agosto do ano passado, já no Ocupa Câmara, quando recebi ameaças de
milicianos e tive que sair do Rio de Janeiro pela primeira vez para não
me matarem. O circo midiático começou em outubro de 2013, na minha
primeira prisão, quando houve a primeira tentativa pública de destruição
da minha imagem. Foi assustador ter saído (da prisão) e me
deparado com aquela construção de uma outra identidade minha. Entrei
nessa luta sabendo das consequências, lutando contra um Estado muito
poderoso. Hoje tenho medo, não posso mais sair sozinha e tudo o que eu
faço tenho que passar para a assessoria jurídica, tanto de cunho
político quanto de cunho pessoal. Até uma viagem com a família, um
jantar ou um almoço, tenho que estar avisando. Acabei perdendo minha
vida privada, meu individualismo. Tenho que ter cuidado pra eu mesma não
confundir minha própria identidade com tudo o que a mídia tem dito, com
o meu próprio querer.
Marino: A Elisa é só uma vítima de uma prática que
já existe, e que faz parte do sistema nervoso da nossa sociedade. É a
construção do sujeito terrorista, e tem raízes inclusive no sistema de
segurança de Israel.
iG: Por que você acha que foi escolhida pela mídia para essa desconstrução da imagem?
Elisa: Tem a questão do machismo. Pela sociedade
conservadora, paternalista, é mais fácil a tentativa de destruir a
identidade feminina com fofoquinha, com histórias do meu relacionamento,
dizendo que sou histérica… Mas, na minha vida pessoal, eu me atirei de
corpo e alma, de sangue, de tudo, nesse processo. Sou filha de
militante, fui criada desde pequetita (sic) nos movimentos estudantis
ainda em Porto Alegre, e minha mãe me levou no Caras Pintadas. Fiquei
afastada dos movimentos por um tempo, que foi o quanto durou meu
casamento. Quando vi o que estava acontecendo, durante as Jornadas de
Junho, já não estava muito feliz na minha vida pessoal nem na
profissional. Então me atirei de cabeça. Me atirando de cabeça, eu sabia
as agendas de cor, eu pesquisava, eu queria participar, estava sempre
na rua. Me envolvi em tudo o que estava acontecendo. Comecei a aparecer
mais, assumir tarefas, resolver. Sou produtora, né (risos), fiz
publicidade e cinema.
iG: Você trabalha?
Elisa: (pausa) Eu tenho emprego, mas o Estado não me deixa trabalhar. Não vou porque não estou conseguindo.
iG: Onde você trabalha?
Elisa: Sempre fui freelancer. Tive alguns trabalhos
fixos em produtoras independentes, menores, principalmente na área de
documentários. Tive uma produtora, até. Como assistente de produção, fiz
publicidade, programas de TV, na Discovery Channel, GNT, MTV…
iG: Como você concilia o trabalho com os protestos?
Elisa: Nas Jornadas de Junho eu estava tentando uma
vaga numa produtora de São Paulo que eu admiro muito, a Gullane (de
filmes como “Bicho de Sete Cabeças” e “O ano em que meus pais saíram de
férias”). Eu sempre gostei dos filmes deles. Eles estavam vindo pro Rio e
eu estava entre um dos nomes para finalmente ter um emprego fixo. Nessa
época eu estava fazendo a assistência executiva do filme “Até que a
Sorte nos Separe 2″, e acabei tendo que escolher. Escolhi me jogar de
cabeça em algo que eu acredito. Acabei me sobressaindo nas ocupações:
Ocupa Câmara e Ocupa Cabral. O Estado sempre teve necessidade de criar
lideranças para destruir movimentos. Mas nesse caso não vai funcionar.
Eles não vão matar o movimento, vão matar uma pessoa.
Marino: Ela não manda nada, não comanda nada. Elisa não é chefe ou comandante da FIP (Frente Independente Popular), não existe isso.
Elisa: O nome da ação maluca que inventaram que ia
acontecer no Maracanã na Copa eu descobri pelo Fantástico qual era:
Junho Negro. Fiquei pensando “nossa, que nome”. Eu descobri muita coisa
(pausa), quer dizer, descobri não né, vi ali muita coisa que eu não
fazia ideia. Descobri que tinha dois RGs pela mídia. Liguei chorando pra
minha mãe (faz voz de choro): “mããe, eu tenho dois RGs?”; e ela
respondeu: “lógico, menina, você tem o RG do Rio e o RG de Porto
Alegre”. E eu (suspira e afina a voz): “ahhh, tá, que bom”
.
iG: Você disse que foi casada.
Elisa: É, foi um casamento civil. Quer dizer, civil não. Fui “ajuntada” por quase 4 anos.
iG: Você se dá bem com seu ex-marido?
Elisa: Sim, é meu grande amigo. Inclusive estamos escrevendo um livro sobre tudo o que aconteceu.
iG: Ele participa com você dos movimentos?
Elisa: Não, ele tem pavor. Quando começou tudo isso
ele falou que não queria ver nada, mas em todos os momentos importantes,
como minhas prisões, foi ele com minhas amigas pessoais, que não têm
nada a ver com o movimento, que ajudaram os advogados a pegar coisas na
minha casa e cuidaram da minha gatinha Branca na casa que comprei com
meu ex-marido, que hoje não mora mais lá. Eles dormiam lá, cuidavam da
casa pra mim.
iG: Como seus amigos e familiares lidam com sua vida no ativismo?
Elisa: Tenho apoio incondicional deles. Nunca tive
nenhum problema. Eles se preocupam, me dizem pra ir com calma, parar um
pouco, mas nunca impediram. Eles me conhecem, então tentam o tempo todo
me defender. Tem muita gente por aí que criminaliza meus amigos também,
porque eles estão me defendendo. O bombardeio vem de todos os lados, e
agora estão tentando até bombardear a minha mãe (Rosoleta Moreira Pinto
Stadtlander), uma pessoa incrível, super inteligente, uma pessoa
maravilhosa.
Marino: Uma mulher muito sensível.
Elisa: Ela sempre nos acompanha.
Marino: Ela é preocupadíssima com a Elisa, e eu
tenho que ficar pedindo calma o tempo inteiro. É uma histórica militante
do PT, como o pai da Elisa (Antônio Sanzi) também é, mas posso te dizer
que como mãe é a que mais liga pra mim, entre todas as mães dos meus
clientes. Tem horas que a Rose me sufoca! Ela me liga a cada notícia que
sai na imprensa, desesperada, e eu respondo: “fica calma, eles vão nos
pagar, vão responder depois por isso”.
Elisa: Ela fofoca tudo pra ele. Mesmo quando eu
tento esconder alguma coisa, minha mãe vai lá e fala pro Marino. A luta
das mães foi sensacional. Tem um vídeo maravilhoso da minha mãe lendo um
bilhete meu numa assembleia popular. Ela é militante, então ela entende
esse universo.
iG: Você acompanha tudo o que sai sobre você na imprensa?
Elisa: Não soube direito o que foi dito sobre mim
enquanto estive presa. Quis ficar quietinha, até porque as próximas
semanas vão ser pesadas e eu tenho que estar bem.
iG: O que é publicado sobre você fragiliza seus amigos?
Elisa: A imprensa, quando faz isso, está me
colocando em risco e pode colocar meus amigos em risco também. Nunca sei
se estou sendo seguida, por exemplo. Pra me matar ou matar algum
companheiro não é difícil, eles não têm escrúpulos, fazem isso todos os
dias. Tem essa tensão de alguma coisa acontecer comigo.
Marino: Essa juventude atazanou a vida do Cabral (Sergio Cabra, ex-governador do Rio de Janeiro).
Você imagina o ódio que ele não tem desses jovens. Ele está se vingando
através de suas influências no Tribunal, na Polícia, no Ministério
Público. Ele é nosso inimigo remoto, esses outros personagens são
teleguiados. Você imagina o ódio que o Jorge Felippe (PMDB-RJ),
presidente da Câmara, tem desses jovens.
Elisa: Ele tem, muito! (risos)
Marino: Imagina o ódio que tem o Brazão (PMDB-RJ), o Paulo Melo (PMDB-RJ). É um ódio mortal. Esses caras todos tem ligações perigosas.
Elisa: São milicianos.
iG: Como chegavam essas ameaças de morte?
Elisa: Perseguição na rua. Ontem mesmo tinha um policial na porta da minha casa. Antes disfarçavam, mas agora nem se importam mais.
Marino: Policiais da DRCI (Delegacia de Repressão
aos Crimes de Informática) esteve duas vezes num vizinho meu, no meu
edifício. Na verdade o que eu recebo é um recado: “estamos pertinho de
você, aqui do lado, quando a gente quiser, te ataca”. No trânsito tenho
que avançar sinal pra despistar carros que me seguem. Meu telefone está
grampeado direto. Eu falo com eles (quando uso o telefone): olha, essa
aqui é pra vocês, segura essa bomba aí.
Elisa: A gente dá bom dia pra Abin (risos). Diz:
“não fofoca essa não, essa não pode vazar” (Marino gargalha). No meio
dessa loucura toda, a gente tenta lidar de uma forma minimamente
saudável e achar alguma graça nisso tudo, porque é uma pressão de
absolutamente todos os lados.
Marino: Tudo deles está voltado pras eleições,
interesses eleitoreiros e eleitorais. Eu não reconheço o sistema
representativo como está colocado no Brasil. Nem os partidos, nem as
instituições; isso não me representa. Nem o Judiciário me representa
como advogado, porque lá eu travo uma luta cruel e crucial, ao mesmo
tempo, da qual eu não abdico (dá um soco em uma das mãos com força).
iG: Como isso se reflete nas eleições?
Elisa: ”Não vote, lute”. Entendo que esse sistema
democrático eleitoreiro é uma grande farsa, e você tem todo um exemplo
que desde o ano passado a população tentando reivindicar e não é ouvida.
O povo é só uma marionete pra esses políticos que estão representando
quem? Eu não vou votar, não voto há anos, só decepcionada por figuras
que achava que salvavam. Me decepcionei mesmo.
Marino: Os últimos elos foram rompidos.
Elisa: A minha admiração não existe por esses
políticos. A mudança pra mim é de fora pra dentro, não de dentro pra
fora. Tem que ser democracia direta, o povo se organizando e
representando seu próprio desejo.
iG: A solução pra você é o anarquismo?
Elisa: Não sei qual é a solução. Sempre me fazem
essa pergunta, mas eu não sei qual a solução, qual a resposta. É um
processo de anos, que não vai ser resolvido aqui. É trabalho de base
mesmo, de formiguinha, que vai levar anos e anos e anos.
Marino: Me identifico com anarquismo, mas não sou
anarquista. Sou comunista, um infeliz comunista sem partido. O
anarquismo é o melhor que a gente pode almejar. Mas antes vamos precisar
passar pelo socialismo, pelo comunismo, para então chegar no estado
avançado da humanidade, que é o anarquismo e a auto-gestão. É um
processo que provavelmente não vou assistir o fim.
iG: Não votar não contribui para perpetuar uma realidade com a qual você discorda?
Elisa: Nossa questão não é “não vamos mais votar,
não queremos mais eleição”. Não é. A questão é a farsa das eleições:
compra de votos, coligações, partidos de aluguel. Por que eu como
indivíduo não posso me candidatar? Se o povo quer que eu me candidate,
por que sou obrigada a me filiar a um partido? Tem que acabar com essas
coisas, é uma máfia, uma máfia. Eu, como cidadã, sou obrigada a votar,
mas não tem candidatos bons, e ainda vou ter que pagar uma multa porque
não vou. (pausa) Por mais que o candidato seja maravilhoso, ele tem três
caminhos: ou ele se corrompe, ou vai ser assassinado – e temos vários
casos de políticos que encararam o sistema e foram assassinados – ou vai
receber o dinheiro por fora para não fazer nada, como é a maioria dos
poucos que restam.
iG: Se não fosse necessário se filiar a nenhum partido político, você se candidataria?
Elisa: Não, porque eu não acredito. Não tô aqui pra
representar ninguém, não quero isso. É uma questão pessoal. Não vou ser
eu que vou ser porta-voz de ninguém. Amo fazer meu trabalho de base,
estar ali com os moradores de rua, nas escolas, promovendo debates.
Nesse sistema eu jamais me candidataria. Porque provavelmente eu ia ser
assassinada (risos).
iG: Em que consistem estes seus trabalhos com moradores de rua e em escolas?
Elisa: Nas assembleias populares, temos umas quatro
ou cinco no Rio. Participo muito, e na própria FIP temos vários
movimentos, muitos independentes. Acabamos ajudando. Não é só
assistencialista, mas é político também. Aqui na Cinelândia, quando
desço do metrô e tenho que ir na Lapa, os moradores de rua daqui me
levam onde eu quiser. Aí eu converso com eles e tento realmente
ressocializar. Aprendo com eles muito mais do que eles aprendem comigo.
Fazemos campanhas, do agasalho, conseguimos trabalho, conversamos com
eles. E em escolas e faculdades tentamos promover debates, segunda de
manhã estávamos na UERJ, por exemplo.
iG: Do que mais você sente falta da sua vida de antes?
Elisa: De andar sozinha (voz mais fina). Até me
arrepiei aqui. Estou sentindo muita falta de poder ter meu jeitinho.
Minhas amigas dizem que sempre fui assim: ou amam, ou odeiam. Porque
sempre fui muito de falar, me envolver, e sou muito impulsiva, desde
pequena, espevitada. E eu gosto de ser assim, não tenho vergonha de
fazer e falar as coisas. E hoje não posso colocar na minha cabeça que
vou ao cinema às 2h da manhã. Tenho sempre que ligar pra alguém pra
pedir pra me acompanhar. Depois de meses sem ir ao cinema, marquei com
um companheiro de militância e chamei uma amiga pessoal. Foi cômico,
porque nós dois queríamos assistir um filme de política e ela queria
assistir X-Men, sacou? E ficou naquela coisa, não fomos ao cinema porque
não chegamos a um acordo e fomos pra um restaurante. Sinto muita falta
de ter minha vida pessoal. Minha vida amorosa, por exemplo, virou
pública, né?
Fonte: iG
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