MÁRTERIS
Dos 30 novos santos brasileiros canonizados há uma semana, só 18
foram identificados pelo nome. Os outros 12 eram parentes ou amigos
deles que, segundo relatos da época, também foram mortos nos massacres
de Cunhaú e Uruaçu, no Rio Grande do Norte, em 1645, durante as invasões
holandesas. Descobrir quem eram as vítimas da matança foi um dos
desafios do padre potiguar Francisco de Assis Pereira, que foi o
postulador da causa dos santos e morreu em 2011, antes de vê-los serem
elevados aos altares.
Durante dez anos, Pereira se debruçou sobre
registros, anotações e documentos históricos que serviram de base para a
abertura do processo de canonização no Vaticano. O resultado do estudo
foi publicado no livro “Protomártires do Brasil”, de 157 páginas, que
traz diversas curiosidades.
No grupo dos 30 novos santos, apenas
27 são realmente brasileiros. Há um português, um francês e um espanhol.
Eram 16 adultos, dez jovens e quatro crianças — a mais nova, uma bebê
de 2 meses, morta com uma irmã e o pai.
Famílias inteiras foram
executadas. Os assassinatos foram cometidos com requintes de crueldade.
Algumas vítimas tiveram línguas, olhos e até o coração arrancados.
—
Naquela época, os protestantes estavam em guerra com os católicos na
Europa, e a disputa chegou ao Nordeste do Brasil. Por isso, era propício
para os protestantes matarem católicos aqui, principalmente sacerdotes.
Mas não bastava matar. Era preciso fazer atrocidades para eles sentirem
o peso de não terem assumido a fé protestante — explica o padre Julio
Cesar Souza Cavalcanti, responsável por encaminhar a canonização dos
mártires na Arquidiocese de Natal.
Os assassinatos em massa foram
coordenados por Jacob Rabbi, um alemão a serviço da Companhia das Índias
Ocidentais Holandesas. Com uma tropa de índios Tapuias, ele coordenou a
matança.
Segundo relatos, os algozes ofereceram aos católicos a opção
de conversão ao calvinismo, mas eles escolheram o martírio.
Embora
só 30 pessoas tenham sido identificadas, o número total de mortos nos
dois massacres pode ultrapassar 300 pessoas, incluindo mulheres,
crianças e escravos.
Dispensa de milagres
O
processo de canonização exige, normalmente, dois milagres comprovados.
No caso dos mártires brasileiros, no entanto, o Papa Francisco decidiu
abreviar esse caminho, por meio de um decreto conhecido como canonização
equipolente. Por esse instrumento, não é necessária a comprovação de
milagres, desde que três requisitos sejam cumpridos: a prova da
antiguidade e constância do culto aos candidatos a santo, o atestado
histórico de sua fé católica e de suas virtudes e a fama de milagres
intermediados pelo candidato.
Se fosse necessária a comprovação
de milagres, não faltariam histórias para serem checadas. A professora
aposentada Sônia Nogueira, de 60 anos, pediu por intermédio dos mártires
a cura do marido, José Robério, de 68, que começou a enfrentar as
consequências de um câncer no cérebro. A doença raramente possibilita
sobrevida de mais de três anos após o diagnóstico. Já se vão 15 anos e 5
meses desde que eles souberam do tumor. “Foi um milagre. A medicina foi
só um complemento”, diz Sônia.
Critérios do martírio
Para
uma morte ser considerada martírio, são necessárias três condições:
morte violenta, “in odium fidei” (por ódio à fé) e livremente aceita. A
definição de martírio se encontra em um documento assinado pelo cardeal
Próspero Lambertini, que depois se tornou o Papa Bento 14.
Dois
homens que morreram nos massacres foram excluídos da lista de mártires
por terem contrariado um dos critérios do martírio: não aceitaram a
morte livremente. Antônio Fernandes e Manuel Alures Ilha, já feridos
pelos índios, puxaram facas e atacaram os algozes, matando três deles e
deixando quatro ou cinco feridos.
Protomártires
Protomártir
é um termo usado para designar o primeiro mártir de uma região. No
Brasil, como foram 30 de uma só vez, eles são chamados protomártires.
Apesar de serem os primeiros mártires genuinamente brasileiros, não são
os primeiros martirizados em solo tupiniquim. Quase um século antes, 40
jesuítas (32 portugueses e 8 espanhóis) estavam a caminho do Brasil,
quando foram mortos. Ficaram conhecidos como os 40 Mártires do Brasil ou
Mártires do Tazacorte.
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